15.7.08

Anotações - "Rocky Balboa"...


Da revisão como redescoberta. Que “Rocky Balboa” era um filme sobre redenção, não restava dúvida; a surpresa está em finalmente enxergá-lo como um filme redentor. Tanto da série em si – as seqüências do modesto e encantador filme inaugural são deturpações progressivamente mais risíveis e oportunistas – quanto do próprio Sylvester Stallone, caricatura do action-hero americano, garoto-propaganda da era Reagan, grande astro decadente. Mesmo os patentes vícios estéticos que pontuam o filme – especialmente o uso inconseqüente de filtros – não são capazes de debelar a serenidade com que se acompanha seus personagens transitando em espaços tão assombrados quanto as próprias imagens. No entanto, entre a nostalgia dos diálogos e os prédios em ruínas de uma Filadélfia que não mais existe, não há espaço para lamentações. Se há um inegável acúmulo de cicatrizes - as feridas de guerra certamente podem ser notadas no rosto, na voz e no andar de Stallone – também incontornável é a crença do filme na capacidade de se conviver dignamente com elas. Só a partir desta autoconsciência se pode apostar nos pequenos momentos calorosos ainda possíveis entre ruas e rotinas levemente melancólicas. Stallone constrói estes instantes com um esmero que está menos em uma excelência visual que na confiança – leia-se, tempo - que deposita nos atores e em suas relações uns com os outros e com os espaços que ocupam.

Assim, é com simplicidade e desenvoltura que o filme resolve os possíveis conflitos entre os personagens – um deles se esvai diante de uma piscadela de olho – e se enche de imagens inauditas exatamente por serem profundamente ordinárias. Chega, inclusive, a suplantar a banalização do circo televisivo que se constrói ao redor da luta de Rocky contra o campeão mundial. À artificialidade gélida do espetáculo em si se opõe frontalmente a entrega incondicional de cada um dos que dele participam. Pouco importa o resultado; no final das contas, fez-se o que se tinha que fazer. Exatamente como no filme original, objeto estranho entre os sucessos da segunda metade da década de 1970, quando os americanos descobriam o filão dos blockbusters juvenis. “Rocky Balboa” é profundamente anacrônico, seja em sua moralidade ou em suas texturas. Tanto melhor.

30.6.08

Citação - Wong Kar-Wai/Rousseau..


A piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a actividade do amor de si próprio, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo o selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, faz a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: faz o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos subtis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo o homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.

Jean-Jacques Rousseau, in "Discurso Sobre a Origem da Desigualdade"

19.6.08

Notas - Shyamalan , Farrell, Allen...

. Se ao falar do novo filme de Shyamalan eu me referi a uma depuração no sentido de se atingir o essencial ao diretor, talvez eu não tenha deixado claro que este não é um processo de concisão formal, muito pelo contrário, o romantismo caro ao diretor dá vazão a uma encenação por vezes hiperbólica que, no decorrer do filme, evolui até atingir o paroxismo na cena em que Mark Wahlberg e Zooey Deschanel caminham e se reencontram em meio a insondável possibilidade de morte. Quando falo em dignidade, me refiro justamente aos riscos que o diretor toma de forma bastante consciente em busca de soluções visuais – e especialmente rítmicas – que abarquem o sentimentalismo exacerbado de seu projeto de cinema. Daí nascem momentos belíssimos e outros de grande inconsistência em toda sua obra, mesmo nos filmes mais acertados, como acredito ser o caso de “Corpo Fechado”, “Sinais” e “A Vila”.

. Querem saber qual é a maior prova de que “O Sonho de Cassandra” é uma obra-prima de contenção? Woody Allen conseguiu transformar Collin Farrell em um ator capaz de tornar seu personagem crível sem qualquer sobressalto. O naturalismo de boutique que marca suas atuações – mesmo em grandes filmes como “Miami Vice” – é prontamente afastado, talvez por ter-se conseguido, finalmente, encontrar um personagem adequado: inseguro, hesitante e completamente incapaz de controlar seus gestos no crescendo neurótico que o filme pontua com perfeição. Não se trata mais da risível dissimulação de uma postura impossível porque eminentemente física, como ocorria em qualquer de suas atuações pregressas, mas justamente o contrário, um esforço em se afirmar justamente por suas fragilidades e incongruências. Este é apenas um dos pequenos milagres que fazem de “O Sonho de Cassandra” uma preciosidade capaz de empalidecer quase toda a produção contemporânea e boa parte dos filmes do próprio Allen. Rigor absoluto de encenação, dramaturgia e ritmo. Trata-se, de certa forma, do oposto lógico de “Fim dos Tempos”; um trágico conto moral incisivo e exato em todos os seus detalhes.

16.6.08

Anotações - "Fim dos Tempos"...


“Fim dos Tempos” não é diferente da grande maioria dos trabalhos de Shyamalan: o romantismo surge como a única forma de resistência diante de um mundo em processo de desintegração, purgando o desgaste das relações pessoais e as inúmeras inseguranças que marcam seus personagens. Neste sentido, talvez seja o filme mais esquemático do diretor, que parece se despir dos diversos subtextos observados em “Corpo Fechado”, “A Vila”, “A Dama da Água” ou mesmo “Sinais”, filme que guarda as semelhanças mais diretas com este mais recente. Alcança-se, assim, uma enorme pureza no relato, diluindo-se todos os elementos para que reste só o essencial. Infelizmente, este processo – e sua incômoda frontalidade que muitas vezes acena ao ridículo – é por vezes hesitante, especialmente quando, ao final do filme, se tenta atabalhoadamente dotar de alguma substância o “happening” do título. Afinal, como dito pelo protagonista em uma das primeiras cenas, há fatos que se esquivam de qualquer teorização. O filme, que parecia se desenvolver a partir deste princípio, titubeia rumo ao fim, mas ainda assim é de uma dignidade rara no cinema contemporâneo.

Obs.: Impressiona como Shyamalan consegue subverter os meios modernos de comunicação transformando-os em ferramentas essenciais para a construção do suspense e horror. Na mesma medida, a utilização do som no filme é bastante incisiva em sua secura, especialmente na cena do canteiro de obras em Nova Iorque.

12.6.08

Links - Atualização...

Seguindo os procedimentos básicos para fazer o blog voltar devidamente a funcionar, atualizei a lista de links ao lado, removendo os não mais existentes e acrescentando outros que se tornaram visitas usuais e possuem textos maravilhosos. Como estes:

. Breakfast at Tiffany's, it's over

. João passou a morar nos filmes

. Godard / Straub

9.6.08

Tradução - Lourcelles...



HUSBANDS
1970 – USA (154’ no Festival de San Francisco reduzidos a 138’ para a versão comercial) • Prod. COL. (Alruban, Sam Shaw) • Dir. JOHN CASSAVETES • Rot. J. Cassavetes • Fot. Victor Kemper (DeLuxe Color) • Mús. Stanley Wilson, Ray Brown • Elenco Ben Gazarra (Harry), Peter Falk (Archie), John Cassavetes (Gus). Jenny Runacre (Mary Tynan), Jenny Lee Wright (Pearl Billingham), Noelle Kao (Julie), John Kullers (Red), Meta Shaw (Annie), Leola Harlow (Leola), Dolores Delmar (a condessa).

O filme mais característico de John Cassavetes. Trata-se de uma espécie de serão fúnebre que toma progressivamente ares de reviravolta pueril, lúdica, acerba, trivial, picaresca e absurda. Mais uma vez crianças e adolescentes, os três heróis vêem repentina e claramente sua própria imaturidade, o impasse e o momento de bloqueio em que se encontram suas vidas. Estas poucas horas de lucidez serão, sem dúvida, nada mais que um parêntese no curso de suas existências, salvo talvez por Harry. Cassavetes recusa a construção, a dramatização; ele utiliza, como Jacques Rozier, a dilatação extrema do detalhe, do instante, da cena, e se volta à pesquisa de uma nova autenticidade. Ele faz uso sistemático do close, encarregado de exprimir o desarranjo dos personagens, seu desequilíbrio, a inexistência de qualquer inserção em um contexto concreto e harmonioso. Uma vez esvaída, ou mesmo simplesmente atenuada, esta potência de choque e de ruptura, não é certo que os filmes de Cassavetes prezem pela durabilidade. Como a maioria dos filmes feitos contra um estilo ou um sistema (neste caso o sistema hollywoodiano clássico), as obras de Cassavetes se arriscam a não serem, em breve, mais que uma simples etapa, um momento significativo no desenvolvimento cinematográfico de uma época. E, quinze anos apenas após seu lançamento, Husbands já parece muito mais como um documento sobre uma certa maneira de filmar que como uma obra viva e eventualmente durável.
. Jacques Lourcelles .

Texto contido nas páginas 717-718 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.